segunda-feira, 16 de julho de 2012

Memórias de um recruta... (2) - a especialidade

Foi em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, que decorreu o curso da especialidade que, no meu caso, foi a de Artilharia de Campanha.
Na altura, a Escola Prática de Artilharia era comandada por Manuel Maria Delgado e Silva, cujo mandato durou de 1965 a 1967.
A partir daqui, será inserido o relato dos episódios que marcaram o curso, sem garantia de que haja uma cronologia na inserção dos mesmos, já que aqui adoptei a forma de escrever ao sabor da memória. Espero que ela me ajude a reconstituir, se não todo, a maioria do percurso.
E vamos ao primeiro episódio.
O cartão de visita
Cheguei a Vendas Novas, ido da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, no dia 22 de Agosto de 1966, utilizando o comboio do ramal do Setil.
Embora tendo chegado mais cedo, só me apresentei no quartel ao princípio da noite, no limite do tempo que o dia permitia.
Sempre era menos um dia de sol que passava fechado.
A guia de marcha que levava comigo, dizia que deveria apresentar-me no Centro de Instrução (C.I.) da Escola Prática de Artilharia.
E assim fiz.
Estava de serviço ao C.I. um oficial que tinha na lapela uma placa de identificação que dizia: - Capitão Norte.
Dirijo-me a ele, fazendo entrega da guia de marcha e, por sua vez, ele entrega-me um boletim que devia preencher com os meus dados pessoas.
Indica-me uma mesa que havia no gabinete, que podia utilizar, retiro uma esferográfica do bolso e começo a escrever.
Acontece então o inesperado: da manga direita do meu blusão sai um bicharoco, desce pela mão, depois pela esferográfica e “estaciona” no boletim que estava a preencher.
Como eu parei de escrever, para ver o que acontecia, o Capitão Norte apercebe-se também da presença daquele intruso e pergunta muito espantado:
- O que é isso, pá ?
- Um percevejo, meu capitão - respondi eu.
Incrédulo, reforçou a pergunta:
- Um percevejo ??
- Sim, meu capitão, um percevejo… mas este é um percevejo especial, porque é também o cartão-de-visita do destacamento da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém.
Claro que a seguir passou a percevejo esborrachado… e muito mal cheiroso.
Tive de explicar depois o que tinha acontecido no destacamento da E.P.C. e das condições que permitiram uma situação daquelas.
Hotel de 5 estrelas mas…
Depois de sair do gabinete do Capitão Norte, fui encaminhado para as instalações do C.I., com a sua recomendação para que sacudisse toda a roupa que trazia vestida, não fosse o caso de trazer algum outro passageiro clandestino.
Ao mesmo tempo ficaria instalado nos novos aposentos.
Lembro-me de ter manifestado o meu espanto pelas instalações, dizendo que aquilo até parecia um hotel de 5 estrelas, face às condições que tínhamos no destacamento da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém.
Aqui, as camaratas pareciam quartos, com um número de camas bastante limitado. Creio que eram 8 camas-beliche em cada camarata.
O que, para o serviço militar, me parecia ser um luxo.
Mas depressa esfriou o meu entusiasmo pelas condições das novas instalações, quando me perguntaram se conhecia o comandante do Centro de Instrução.
Face à minha resposta negativa, puseram-me então ao corrente do rigor disciplinar que ele ali  impunha, inspirando um temor enorme a todos os que lidavam com ele, fossem oficiais, mesmo da sua patente, sargentos, praças ou instruendos.
Era o capitão Oliveira, com formação nos comandos.
Embora a esta distância no tempo, lembro-me de ouvir dizer que, após o 25 de Abril, passou a ser o 2º. Comandante do Regimento de Comandos da Amadora, então comandado por Jaime Neves.
Capitão pisca-pisca
Era, pois, este capitão Oliveira que na Escola Prática de Artilharia comandava o C.I. e que todos conheciam por “capitão pisca-pisca”.
Homem de baixa estatura, quando falava com alguém posicionava-se de pernas afastadas e tinha a característica de não encarar as pessoas de olhos abertos.
Ficava com eles cerrados ou semi-cerrados, ou ainda com eles a tremelicar, daí derivando o epíteto de “capitão pisca-pisca”.
Muitos episódios haveriam de vir a justificar, com toda a razão, o temor que ele inspirava.
E, ironia das ironias, foi para o gabinete do Capitão Oliveira que eu fui requisitado, após terminar o curso da especialidade, passando com ele mais de meio ano, até ser mobilizado para Angola.
Mas todos os homens, por mais “duros” que sejam, dão a conhecer facetas que nos surpreendem, mostrando que o ser humano é afinal como uma moeda, tem sempre duas faces.
E no momento próprio aqui deixarei o relato de algumas situações que o atestam.
Levava a disciplina a este ponto… !!!!
Não sei se tudo aconteceu como era contado.
Havia em Vendas Novas, oficiais com residência em Lisboa, portanto a cerca de uma hora de caminho, que por vezes iam passar a noite com a família, regressando pela manhã, a tempo de começar o seu serviço normal.
O que se dizia é que numas das vezes o capitão Oliveira pede boleia a um desses oficiais, com a patente de tenente, passa também a noite em Lisboa e faz com ele o regresso a Vendas Novas, para ambos retomarem o serviço no dia seguinte.
Ao chegar ao quartel, participou do oficial, companheiro de viagem.
A razão era a de que esse oficial não teria solicitado, como os regulamentos determinavam, a autorização para se ausentar do quartel.
Se isto foi verdade, confirmava-se que a disciplina, para o Capitão Oliveira, era mesmo para ser levada ao limite.
Oferecer o corpo à bola… uma experiência dolorosa… nas bolas !
Era da praxe que, no início de cada turno do curso de CSM, se realizasse um jogo de futebol entre os “velhinhos” e os “maçaricos”.
Como “velhinhos” entendia-se que eram os cabos milicianos ou já sargentos milicianos, saídos de cursos anteriores e aguardando colocação ou já colocados na Escola Prática de Artilharia.
Como “maçaricos” os que estavam a iniciar o referido curso. Era o meu caso.
Mesmo não tendo qualquer jeito – nunca tive - para o pontapé na bola, lá fui integrado na equipa dos “maçaricos”.
Fui posto como defesa, porque lá na frente sempre tinha de fintar os adversários e marcar golos, enquanto cá atrás era só desfazer jogo e tentar evitar golos.
A dada altura surge na minha frente um adversário pronto a rematar para o golo.
Na minha tarefa de os evitar, “ofereço” o corpo à bola e consigo que ele não concretize os seus intentos.
Mas tendo “oferecido” o corpo à bola, não contava que ela escolhesse um sítio tão melindroso para o embate… nada menos que o baixo-ventre.
Então senti que o mundo estava mesmo a desabar sobre mim.
Não conseguia respirar, entro em convulsão e o que tinha comido foi logo despejado.
Quanto à dor… nem é bom pensar.
Era lancinante, e só me levava a pensar que os “tarecos” tinham ficado esborrachados, como ficou o percevejo.
Começaram então a fazer-me uns exercícios, levando os joelhos quase à cabeça, e ao fim de um certo tempo lá consegui caminhar para fora do campo.
Mais tarde, já recuperado mas muito dorido, ainda me gozaram, contando-me a anedota daquele sujeito que estava na sala de espera de um hospital e onde muitas mulheres iam falando de diversos tipos de dor.
Uma dizia que não havia pior que uma dor de dentes;
Outra dizia que, pior, era a dor causada por um panarício;
Outra dizia que era uma cólica renal;
Outra, ainda, dizia que era parir um filho...
Até que o sujeito, farto de tanto ouvir falar em dores, disse:
- Óh minhas senhoras, se algum dia levassem um pontapé nos tomates, é que ficavam a saber o que era dor… !!!
A reconstituição destes episódios
É verdade que quase todas as situações são reconstituídas de memória.
Mas também é verdade que tenho uma preciosa ajuda, por parte do meu arquivo.
De facto, ao longo dos anos, sempre tive o hábito de deixar coisas no caixote das recordações.
Se algumas delas são pouco mais que lixo, outras têm-se revelado duma utilidade extraordinária, ajudando à reconstituição de situações que não imaginava pudessem vir a ser relembradas.
É o caso destas memórias da recruta e da especialidade, em que as imagens são verdadeiras preciosidades.
Mas não só.
De entre as coisas da especialidade em Vendas Novas, vou encontrar o caderno dos apontamentos que fui tirando ao longo do curso.
Uma sebenta, com o registo da matéria que nos era dada, sempre acompanhado de uns desenhos para ilustrar as situações.
Nesse caderno também se encontra a relação dos apelidos e das classificações finais dos companheiros de curso, para além das provas e testes por mim efectuados, bem como das notas obtidas.
Campanha – a minha especialidade na Artilharia
Para além da especialidade de Artilharia de Campanha, que foi a minha, também havia as de I.O.L. (Informação, Observação e Ligação), Transmissões e Topografia.
Creio serem estes os nomes e não ter esquecido nenhuma.
Tais especialidades, eram comuns aos cursos de Oficiais Milicianos e Sargentos Milicianos.
Da mesma forma que aconteceu na recruta, na especialidade não era descurada a nossa preparação física, mas também nos era ministrada preparação técnica que nos habilitaria para os palcos de guerra, como era o caso da guerra nas antigas colónias.
Mas a educação cívica andava a par da educação militar e ambas eram muito exigentes, nesta se destacando os deveres militares e a disciplina militar.
A Artilharia de Campanha, como já o referi, tinha a ver com as peças de artilharia (canhões) e os obuses, por conseguinte sempre afastadada do local das operações propriamente ditas, entre 3.500 e 12.250 mts., dependendo do tipo de granada.
Por isso, se os militares das outras especialidades, quando envolvidos nos exercícios a simular uma guerra convencional, se posicionavam em terrenos mais avançados, a Artilharia de Campanha posicionava-se na rectaguarda, de onde seriam lançados os projécteis para o “campo de batalha”, situado para além da posição desses outros militares.
Em Vendas Novas, para os exercícios com fogo real envolvendo a Artilharia de Campanha, havia o chamado polígono militar, para onde se faziam os disparos.
Por vezes éramos deslocados para mais de 10 km de distância, daí se fazendo tais disparos, cuja trajectória até podia coincidir com o alinhamento da povoação de Vendas Novas, dependendo do sítio em que éramos posicionados.
Algo que me fazia grande confusão era saber que, no momento dos disparos, havia sucateiros que se introduziam no polígono, bem perto do sítio onda caíam as granadas, para apanhar os restos metálicos que sobravam do seu rebentamento.
Eram diversos os sucateiros, mas havia entre eles uma convenção que permitia que cada qual assinalasse o sítio da queda da granada que lhe cabia, onde no final da sessão de fogo iriam recolher os destroços.
Contava-se que houve gente apanhada pelo fogo, mas os riscos eram impostos pela necessidade de realizar algum dinheiro com a venda da sucata, porque a sobrevivência o exigia.
A semana de campo do curso
O curso culminou com a semana de campo, durante a qual fomos levados a pôr em prática todos os ensinamentos que nos haviam ministrado.
De dia ou de noite eram similadas situações em tudo semelhantes às que poderiam ser vividas em operações de guerra, sendo testada toda a nossa capacidade para a elas reagir.
O inesperado de muitas das situações conferia-lhe todo o realismo que se procurava atingir com esses exercícios, até porque nos colocavam mesmo perante fogo real, o que não deixava margem para o erro.
Se bem que tudo fosse programado e calculado para que não houvesse acidentes fatais, nunca havia a garantia de que os mesmos não acontecessem.
Era, pois, com o maior dos alívios que se ouvia a voz de fim de exercícios da semana de campo e regresso ao quartel, onde nos esparava o banho que iria aliviar-nos da carga de poeira acumulada em cima de nós durante essa semana.
Para além disso, era também muito reconfortante para nós saber que a seguir nos era concedida uma semana de férias em casa, privilégio que embora não estivesse previamente anunciado, já fazia parte da  tradição.
Carneiro, o judoca – incapaz para o serviço militar
Dos camaradas idos da Escola Prática de Cavalaria, embora não companheiro do mesmo pelotão, um era o Carneiro, de S. Romão do Coronado.
O tal que me aplicou o golpe de judo e malhou comigo no chão, já aqui relatado num dos episódios da recruta.
Estava na mesma camarata, em Vendas Novas, até muito perto de mim, mas estaria integrado noutro pelotão, pois não me recordo da sua participação nas actividades militares em que eu participava.
Notava, sim, que se ausentava diversas vezes, permanecendo fora durante algum tempo.
Um dia ouvi-o dizer que as ausências tinham a ver com as suas idas ao Hospital Militar, devido a um problema físico relacionado com uma perna, que seria mais curta que a outra.
Por causa disso, tentava que o considerassem incapaz para o serviço militar.
Consequentemente, também se livrava de ir para o ultramar.
Como referi, não me lembro das suas movimentações, mas ao ter registado no meu caderno de apontamentos os apelidos de todos os companheiros de curso, com as respectivas notas classificativas finais, vim a dar-me conta que em último lugar registei:
- Carneiro – incapaz para o serviço militar.
O que não deixa de ser irónico e, por isso, aqui o refiro expressamente, é que o praticante de judo que aplicou o golpe que me fez sentir, de forma bastante dolorosa, a dureza do solo da parada da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, tenha sido dado como incapaz para o serviço militar.
Trovoada… com descarga eléctrica …
A quando do desenrolar do nosso curso e no regresso das instruções no campo, todos desejávamos chegar ao duche o mais rapidamente possível.
Numa das vezes uma trovoada fazia a sua ameaça sobre Vendas Novas.
Indiferentes a esse facto, fomo-nos dirigindo para o duche, como era habitual.
Todos fomos tomando banho e saindo, à medida que o completávamos.
A dado momento, acontece um relâmpago e um violento trovão, ao mesmo tempo que um companheiro que ainda se encontrava debaixo do duche solta um forte grito.
Os companheiros que ainda permaneciam nas instalações acudiram-lhe de imediato, retirando-o para outra área das instalações, mas constataram que ele se encontrava muito combalido.
Dizia, repetidamente, que tinha apanhado um grande choque eléctrico quando estava debaixo da água, no momento em que se viu o relâmpago e ouviu o trovão.
Boleia falhada… 17 km de marcha !
De Vendas Novas, ir passar o fim-de-semana ao Fundão, não era uma tarefa muito facilitada, para quem não tinha transporte próprio.
Como era o meu caso e o de muitos outros, na altura.
Restava como alternativa o comboio, que impunha uma noite de viagem, se não houvesse a possibilidade de antecipar por algumas horas a partida, o que permitia apanhar um comboio com chegada ao princípio da noite.
Nos bancos de madeira do velho comboio do ramal do Setil, fazia-se o percurso de Vendas Novas precisamente até ao Setil, aí se aguardando por outro comboio que fosse para a Beira Baixa e passasse pelo Fundão.
O regresso impunha outra aventura semelhante, que começava no domingo à tarde, chegando a Vendas Novas pela madrugada.
Claro que tantas horas de comboio, permitiam retemperar forças, dormindo. Apesar das repetidas viagens, das horas dormidas durante as mesmas, nunca fui além da estação em que devia abandonar o comboio.
A dada altura, soube de um amigo que estava na tropa em Sacavém, que tinha a possibilidade de trazer para fim-de-semana as viaturas que necessitavam de “fazer a rodagem”.
Eram viaturas do tipo Unimog, usadas pelo Exército Português no transporte de pessoal, e então passei a ter a possibilidade de usufruir desse transporte até Pegões, dali me desenrascando, à boleia, até Vendas Novas.
Embora isso implicasse também a noite inteira de viagem, recolhendo outros camaradas distribuídos na ida, a verdade é que era sempre um enorme divertimento fazer essa viagem, com peripécias incríveis, como a de alguém que enjoou, vomitando os dentes postiços que usava.
Difícil foi encontra-los na estrada, com todo o pessoal a seguir o rasto da “comida entornada”. Mas conseguiu-se.
Se bem que, andar à boleia, nunca tenha sido o meu forte, um dia aceitei a sugestão de um familiar para ir no autocarro de Vendas Novas até Estremoz, para ali apanhar boleia numa  camioneta da firma Martins & Rebelo, que habitualmente ia buscar leite para o Fundão, onde esse familiar trabalhava.
Assim fiz.
Chegado a Estremoz vou procurar a firma Martins & Rebelo, mas ali já não havia camioneta que me levasse para o Fundão.
Só me restava tentar a boleia, pondo-me então a caminhar na estrada que liga Estremoz a Sousel.
Sempre de braço no ar, acenando aos carros que passavam, fui caminhando, caminhando, mas de boleia, nada.
Ninguém parava e a noite apanhou-me na estrada, a penantes.
E caminhei durante umas quatro hora, até chegar a um café de Sousel, por volta das 23,00 horas.
Ao entrar, dou de caras com um outro militar que vira no autocarro, também vindo de Vendas Novas, que me diz ter tido o mesmo insucesso na boleia e ter feito igual trajecto, apenas com meia hora de avanço, o tempo que eu perdi na procura da firma Martins & Rebelo.
Se antes temos sabido um do outro, pelo menos podíamos ter feito o percurso de companhia.
Também ia para os lados de Castelo Branco.
E em Sousel fomos mais felizes na boleia, porque um pesado que ia para Alcains nos levou a ambos, no meu caso até à estação da CP, onde apanhei o comboio até ao Fundão.
Como se percebe pelo título, a distância entre Estremoz e Sousel é de 17 Km.
O perna de pau
Porque também se passou no trajecto Estremoz-Sousel, ocorreu-me aquele episódio da família alentejana com 9 filhos, que esperava o autocarro.
Vou deixá-lo aqui escrito, para não ser só tropa como assunto.
Para além dos 9 filhos, todos relativamente pequenos, estavam pai, mãe e um outro sujeito com uma perna de pau, isto é, uma antiga prótese em madeira, do joelho para baixo, a qual tinha na extremidade uma anilha metálica, para evitar o desgaste.
Chegado o autocarro, o cobrador deixa entrar primeiro as crianças e, quando a última se instala, diz:
- alto, não entra mais ninguém, porque já só há um lugar e sei que está no caminho a GNR. Só pode ir a mãe ou o pai com as crianças.
A opção foi ir a mãe.
Ao pai e ao perna-de-pau não sobrou alternativa que não fosse ir a pé.
Fazia calor e um deles até colocou dentro do chapéu o seu lenço tabaqueiro, para absorver a transpiração, como fazem os ceifeiros.
E caminharam durante algum tempo, em silêncio, apenas se ouvindo o bater da perna de pau no chão, cuja anilha metálica ia tornando o barulho insuportável, à medida que se alongava a distância percorrida.
Às tantas o pai das crianças, já saturado com o barulho da anilha, vira-se para o companheiro de viagem e diz:
- eh compadre, já não aguento a dor de cabeça que essa porra me provoca … se vossemecê tivesse metido uma borrachinha aí na ponta da perna de pau, nada disto acontecia !
- fale calado, compadre, fale calado…-  respondeu o outro.
- mas como posso falar, se estiver calado, compadre ? - ainda argumentou o pai das crianças.
- então não fale, compadre, não fale, porque se vossemecê tivesse metido uma borrachinha na porra da gaita, há uns anitos atrás, a esta hora não ia eu, aqui, a pé… !
Requisitado pelo capitão Oliveira
Concluída a especialidade e como pertencia à 4ª. Bateria, do Grupo de Instrução, fiquei por ali como adjunto do 1º. Sargento, responsável pela mesma.
Em dado momento, o Conselho Administrativo ou a secretaria geral da unidade, já não posso precisar, andou a perguntar por quem soubesse trabalhar com stencil, que era a forma como se editavam as ordens de serviço.
Mas com o stencil também se faziam ilustrações e desenhos, que era o que estava a ser necessário fazer naquele momento.
Eu terei dito na 4ª. Bateria que já trabalhara com stencil, embora há muito tempo que não o fazia.
Alguém fez chegar ao conhecimento da secretaria aquilo que eu tinha dito, vindo a ser chamado pelo oficial responsável.
Fui então requisitado à 4ª. Bateria, para ir para a secretaria da unidade.
Mas por pouco tempo.
O capitão Oliveira reagiu de imediato e com o argumento “se ele é bom para a secretaria, também é bom para mim…” fez-me regressar à 4ª. Bateria, para ir trabalhar para o seu gabinete.
E foi ali que encontrei outros camaradas, um de cada especialidade, recordando o nome de um deles, o Ernesto Almeida, que jogava futebol no Estrela de Vendas Novas.
Destinados aos serviços auxiliares
Num período bastante curto, entre o final do meu curso e a ida para o gabinete do capitão Oliveira, tomei conta de um pelotão de militares que haviam sido destinados aos serviços auxiliares.
Eram homens aproveitados para tarefas menos exigentes, por não reunirem as condições físicas necessárias para a execução das tarefas destinadas aos que eram apurados para todo o serviço militar.
Mas em tempo de guerra não se desperdiçavam meios, fossem materiais ou humanos.
Não fiquei a saber qual era o percurso que seguiam até serem colocados nesses chamados serviços auxiliares, mas sei que durante uns dias fui incumbido de os ter ocupados… mas sem grandes exigências físicas.
Ia com eles até ao campo, ao som do:
- Um, dois, esquerdo, direito…
- Um, dois, esquerdo, direito…
Levava um livrinho sobre educação cívica e disciplina militar, fazia uma prelecção sobre o assunto e, ao fim dumas horas, regressávamos ao quartel.
Era um pelotão em que havia das mais díspares estruturas físicas:
- Altos, baixos, magros, gordos e até um coxo, com uma perna mais curta que a outra.
O fardamento também não era exigente, pois um andava em chinelos, por não suportar outro calçado.
O que se podia chamar de uma caricatura de militares.
Não foi por acaso que algumas vezes lhes ouvi chamar de “pelotão dos inválidos”.
Aquele gajo é cá um militarista !!!
Num tempo em que possuir automóvel era um luxo só acessível a alguns, principalmente quando ainda na dependência dos pais, como acontecia comigo e muitos outros camaradas, apareciam exemplos que demonstravam que em tudo há sempre excepções que apenas vêm confirmar a regra.
Quando já me encontrava colocado na 4ª.Bateria, do C.I., foi dado início a um novo curso.
Por essa altura começámos a ver estacionado nas proximidades do quartel ou a circular por ali, um daqueles automóveis que desperta as atenções mesmo nos tempos actuais:- nada menos que um descapotável de dois lugares da marca Maserati.
A curiosidade levou-me a perguntar quem era o felizardo que tinha uma máquina daquelas, sendo informado que era de um instruendo de apelido Figueiredo, ligado aos donos do Casino Estoril ou das famílias ricas daquela zona.
Mas aquela era apenas uma das máquinas que despertava a atenção.
Porque logo depois, tal instruendo surgia com um Porsche, para de seguida surgir com um Mercedes-Benz.
E não sei que mais.
E depressa ele se tornou numa figura muito conhecida, não só pelos carros que apresentava, mas pelas suas extravagâncias de homem endinheirado.
Soava que a uns pagava para lhe engraxarem as botas, a outros para lhe limparem a arma, a outros para lhe tratarem da roupa, etc., etc.
Às tantas já se via a circular dentro das instalações do quartel com um certo à-vontade, só tolerado a oficiais.
Era o poder do dinheiro a impor a sua lei.
Na 4ª. Bateria, em que eu estava colocado, o responsável era um 1º. Sargento, que eu via condescender muito com as intromissões desse instruendo, como se aquilo fosse tudo dele.
Até que um dia, seria uma sexta-feira porque metia passaporte, eu estou sozinho nas instalações e de rompante entra porta dentro esse instruendo e dispara:
- Oh pá, dá-me aí o meu passaporte.
Aponto-lhe a rua e disse: ponha-se lá fora e peça licença para entrar.
Ele fica algo confuso, mas passou para o exterior, pedindo então licença.
Eu autorizei e ele repete:
- Dá-me lá então o meu passaporte.
E eu:
- Diga...
Mesmo repetindo eu o “diga…”, não conseguia fazê-lo entender que eu estava exigir-lhe que não me tratasse por tu, até que eu, pausadamente, lhe disse:
- Mas afinal de contas de onde é que você me conhece? Teremos andado juntos na costura… ou quê?
Só depois de pedir desculpa e pedir também o passaporte de fim-de-semana como eu exigia, é que lho entreguei.
Foi a única vez em que usei de uma atitude virada para a velhacaria para com alguém e me vali da autoridade que tinha no momento.
A verdade é que não tinha gostado da sua atitude, no início.
Soube depois que esse Figueiredo desabafou sobre mim e da minha atitude, dizendo:
- Eh pá, aquele gajo é cá um militarista !!!
Serrão… um obcecado !
Após terminar o curso,  deixámos as camaratas das instalações do Centro de Instrução e fomos para a camarata das instalações do edifício central da Escola Prática de Artilharia.
De entre os cabos milicianos que se encontravam instalados nessa camarata, estava um de apelido Serrão.
Era uma pessoa muito extrovertida, com brincadeiras que nunca tinham horas para ser feitas.
Como exemplo, o hábito de tomar banho ou cortar a barba quando todos os outros estavam a iniciar a noite para dormir, fazendo um espalhafato que deixava tudo em polvorosa.
Numa das vezes decorou a cara com a pasta dos dentes, amarrou uma fita à volta da cabeça e colocou a escova a servir de pena, como as que usam os guerreiros índios e depois saiu para a parada, imitando aqueles guerreiros no seu grito de guerra.
E tudo se passou muito depois da meia-noite.
Mas o Serrão era mesmo assim e nunca tais brincadeiras lhe foram levadas a mal.
Até porque o Serrão também se manifestava de outra forma muito obsessiva, quando dizia com aparente convicção de que se fosse mobilizado, não voltaria do ultramar.
Colaborando ou provocando a brincadeira obsessiva e mórbida do Serrão, havia companheiros que recortavam da necrologia de algum jornal o pedaço que tivesse a cruz, colocavam o nome do Serrão e afixavam-no na porta do armário dos seus haveres pessoais.
Entretanto o Serrão foi mesmo mobilizado para Angola.
Também eu fui mobilizado para Angola e o tempo da comissão de serviço chegou ao fim.
Quando já prestes a embarcar de regresso, encontrei outros companheiros que haviam estado em Vendas Novas, a quem perguntei pelo Serrão.
Com grande surpresa e pesar, dizem-me que o Serrão tinha morrido.
Ao perguntar as circunstâncias, fui informado de que o Serrão tinha levado uma comissão apavorado com o receio de que algo de mal lhe pudesse acontecer.
Nunca saía do aquartelamento, mesmo quando era nomeado para qualquer operação militar, procurando trocar o serviço ou pagando até para que outros o fizessem por si.
Até que um dia, estando a tomar conta do bar, porque havia trocado o serviço com o habitual encarregado desse serviço, faltou a cerveja.
Havia uma unidade perto do seu aquartelamento e pediram então para que eles lhes cedessem cerveja.
E o Serrão lá foi buscá-la, porque era ele, naquele momento, o encarregado do bar.
Pois foi nesse pequeno trajecto que o destino se consumou.
Uma mina explode debaixo da viatura, ceifando a vida ao Serrão.
As aptidões profissionais
Das aptidões profissionais declaradas e que ficaram a constar dos meus registos militares, estava a de dactilógrafo.
Não surpreendeu por isso que, quando se tornou necessário um escrivão para fazer parte de um auto de averiguações, eu tenha sido nomeado.
O próprio capitão Oliveira era o instrutor do processo, que resultou de um acidente com a explosão de uma granada logo à saída do tubo de um obus, que vitimou um instruendo que fazia parte da guarnição da peça.
Fui logo prevenido de que ficava sujeito ao segredo de justiça, o que não era novidade para mim, face à experiência que tivera de quando trabalhei no gabinete de um advogado.
Julgo ter desempenhado correctamente as funções de que me incumbiram, que apesar do caracter obrigatório em que estavam envolvidas, sempre tiveram um “muito bem…”, que me soube a gratidão, quando a instrução do processo foi dada por terminada.
Percebes de composição tipográfica ?
Um dia o Capitão Oliveira procurou saber se alguém percebia de composição tipográfica.
Eu nunca tinha sido tipógrafo, mas já tinha lidado com carimbos de composição manual dos nomes, em que se utiliza o mesmo princípio.
Respondi, então, que tinha a noção de como se fazia.
Disse-me depois que a intenção era fazer sobre um nastro com cerca de 2 cm de largura o apelido de cada um dos instrutores, para estes coserem na lapela da farda de trabalho e servir de identificação.
Mostrou a seguir um estojo com tudo o que era necessário para a composição dos nomes.
Fiz diversas experiências de composição e tudo estava a resultar bem, mas a tinta que utilizava não surtia o efeito desejado.
Até que pedi para me trazerem um pouco de óleo queimado, do que se retira do motor das viaturas, verificando depois que o mesmo era aquilo que se pretendia.
A partir daí, foi utilizar a técnica com todos os nomes necessários.
Descobri agora, no caixote das minhas recordações, alguns desses nastros com nomes que ficaram das primeiras experiências.
Para além do meu, ainda estão o do Amaral, o do Inácio e o do Ribeiro.
As provas de aptidão
Com melhores ou piores resultados, levei a cabo todas as provas de aptidão física a que me submeteram.
Já lá vai muito tempo, mas ainda retenho na mente a transposição do muro e da vala, o salto em extensão, a corrida, os abdominais, o pórtico e o galho.
O pórtico não foi fácil para mim, porque tinha alguns problemas com as vertigens.
E caminhar em passo acelerado em cima de uma estrutura em cimento armado, a 6 metros de altura, não era lá muito fácil.
Mas de tanto teimar, acabei por ultrapassar esse problema e executei a prova com relativa facilidade.
O galho levantava sempre alguns problemas, devido ao facto de termos por baixo o vazio e não haver a certeza de alcançarmos o mesmo, em segurança.
Isso levava a uma certa retracção no salto e o abraço forçado ao poste, por onde se escorregava, quando o galho se escapava das mãos.
Sobrava então a dor no baixo-ventre, porque era quase inevitável o embate nessa zona.
Sirvo-me destas imagens, uma delas tornada pública por SPM8146.blogspot.com, para mostrar como eram esses equipamentos.
Podia ter sido uma tragédia
Não sei se ainda estaria no gabinete do capitão Oliveira.
Não sei se estaria já a aguardar transferência para o RAL2, em Coimbra, onde fui colocado, enquanto não fosse para o Entroncamento, a formar pelotão e embarcar para Angola.
Sei, sim, que este episódio aconteceu.
E sabe Deus o susto que apanhei.
Num determinado dia, fui prevenido de que viria uma embaixada de Oficiais-Generais visitar a Escola Prática de Artilharia e que seria feita uma demonstração de tiro, por parte de uma secção comandada por mim e supervisionada por um oficial.
Todos os militares das outras especialidades, necessários às operações de tiro, se posicionaram no terreno, bem lá na frente
A nossa secção foi também levada para o terreno e tomou posição, aquém de Vendas Novas, enquanto as suas movimentações eram observadas pelo grupo de Oficiais-Generais.
Foram-nos então fornecidos os dados que o apontador havia de introduzir nos instrumentos de pontaria, tendo em conta o objectivo a alcançar, sendo eu a fazer a última observação, confirmar que tudo estava em ordem e informar disso o oficial, que daria a ordem de tiro.
Feito o primeiro disparo, que saiu perfeito, mandam preparar para novo disparo.
O apontador repete todas as operações, fazendo eu as verificações necessárias com vista a eventual correcção no funcionamento dos instrumentos, que pudesse ter-se modificado devido ao salto da peça, no momento do disparo.
E é dada ordem para o segundo tiro.
Logo após o disparo, soa o alarme, porque desta vez o projectil havia caído atrás da linha em que se posicionavam os militares que observavam a queda do fogo.
Havia que corrigir o alcance do tiro.
Feita a correcção dos instrumentos de pontaria, com todas as observações que se impunham, é feito o terceiro disparo.
E desta vez o alarme é geral, com ordem de suspensão imediata de todas as operações no terreno.
Tinha acontecido que o terceiro tiro quase havia caído dentro da povoação de Vendas Novas.
Procurando encontrar uma explicação para a ocorrência, acabamos por dar-nos conta de uma insólita anormalidade, da qual não se apercebeu nenhum dos que observaram os instrumentos de pontaria: o apontador, eu e o oficial.
Não retenho já todos os pormenores sobre os instrumentos de pontaria, mas recordo que sobre o prato de alcances havia um braço no qual se deslocava uma corrediça, que ao ser fixada nesse braço com um parafuso e posicionada em determinado sulco do prato, determinava a maior ou menor elevação do tubo do obus, com a consequente modificação do seu alcance.
Pois aconteceu que essa corrediça não foi fixada como devia, deslocando-se no braço quando a peça dava o salto com o disparo.
É verdade que, tanto o apontador, como eu, tínhamos a preocupação de a ver posicionada no sítio correcto do prato de alcances, mas ao agirmos no sentido de a repor ali, não reparando que se deslocara no braço por se encontrar desapertada, estávamos a fazer com que o tubo do obus reduzisse a sua elevação.
Consequentemente, reduzia-se o alcance dos tiros.
O que aconteceu com esta insólita anormalidade, já foi contado.
Apesar da gravidade da ocorrência, não aconteceu qualquer dano irreparável, o que evitou a abertura de processos de investigação ou disciplinares, para apuramento de responsabilidades.
Mas podia ter sido uma tragédia.
Felizmente não aconteceu.
Ficou apenas o susto.
Lembrei-me dos outros… esqueci de mim próprio !
Na instrução militar a acção psicológica nunca é descurada.
Recordo que a nossa especialidade teve, nesse domínio, uma componente muito importante. Umas vezes foi exercida de forma bastante velada, mas outras, de forma bastante intensa.
Já depois de concluída a especialidade e enquanto adjunto do Capitão Oliveira, estive sujeito ao segredo militar, que ele próprio não esquecia de vincar e de lembrar, pelas consequências disciplinares que daí poderiam advir, se o segredo fosse quebrado.
De qualquer modo, nunca por mim foi posto em causa.
Aliás, enquanto estive no gabinete e no decurso de outros CSM / COM, era eu que tinha a responsabilidade de calcular as médias, face aos testes dos instruendos, elaborar as pautas classificativas e torna-las públicas.
Sei bem as tentativas que foram feitas, no sentido de saberem de mim as classificações de um ou outro instruendo. Mas sempre sem resultado.
Dizia-lhes:- classificações, só no final.
Um dia, um oficial do C.I. fez-me uma pergunta do género a respeito de certo instruendo, com resposta negativa da minha parte.
Então insistiu:- mas o gajo chumba ?
Dissimuladamente, abanei a cabeça para um lado e para o outro e voltei-lhe as costas.
Ainda ouvi o seu comentário:- já ganhei um presunto !
Mas sobre a acção psicológica, recordo que na programação de um dia de instrução com essa forte componente, foram dadas ordens aos instrutores (comandantes e monitores) para que o dia de trabalho fosse prolongado por mais duas horas, sem qualquer explicação.
Haveria perguntas, que não teriam respostas e todos ficariam no campo até às 20,00 horas, passando sobre as 18,00, em que era habitual terminar.
Sem explicações para não quebrar o segredo, aconselhei dois ou três camaradas instrutores, mais amigos, para que metessem uma sandes no bolso.
- Isso não é preciso… nunca foi preciso… - respondeu um deles.
O outro terá seguido o conselho.
Contudo, eu também não o fiz, embora sabendo o que ia acontecer.
Como estava no gabinete, juntamente com os outros três camaradas, pensei que estava a salvo daquela acção psicológica.
Puro engano.
As 18,00 horas passaram, as 19,00 também e só às 20,00 fomos autorizados a sair.
De barriga vazia.
Assim era exercida a acção psicológica.
O meu caderno
Acompanhou-me durante o 2º. Turno do C.S.M. 1966.
O curso da minha especialidade - Campanha.
Nele, fiz muitos registos e desenhos.
Uma característica que nunca me abandonou e que tem sido muito proveitosa ao longo da minha vida.
Guardei-o, como recordação.
Agora ajudou-me a reconstituir muitos dos episódios que aqui deixo relatados.
Um companheiro de então, o Zé Manel Henriques, recordou-me há pouco tempo que algumas vezes lhe teria dado ajuda para fazer os testes, socorrendo-me do caderno.
Já não me lembrava.
Mas é possível que o caderno tenha feito a diferença.
A festa de despedida
O final de curso COM / CSM – 2º. Turno de 1966, teve direito a festa.
Do programa constava:
10H40 – FORMATURA GERAL DA BATERIA
11H00 – MISSA CAMPAL
12H00 – DESFILE DA BATERIA
14H30 – ALMOÇO DE CONFRATERNIZAÇÃO DA 4ª.B.I.
15H00 – DISTRIBUIÇÃO DE PRÉMIOS
15H30 – ACTO DE VARIEDADES

Foi um dia diferente de todos os outros passados na Escola Prática de Artilharia.
Mas no meu caso, este dia teve um significado muito especial, porque no momento da distribuição de prémios fui chamado para receber o prémio que me identificava como o 1º. classificado do curso.
É verdade que se tratou apenas de uma pequena placa, como a imagem documenta.
Pequena mas, para mim, com um grande simbolismo.
E o simbolismo, é que verdadeiramente conta.
Afinal, há apenas um 1º. classificado, nessa especialidade do curso.
E esse 1º. classificado fui eu.
Um gesto surpreendente
Já deixei escrito que no gabinete do capitão Oliveira estávamos quatro adjuntos, um por cada especialidade que era ministrada nos CSM/COM, já com a especialidade concluída no 2º. Turno de 1966.
Ali ficámos por sua requisição.
No decurso de outros cursos que entretanto foram iniciados, cada qual tinha a sua tarefa que, no meu caso e apesar de ser de Campanha, tinha a responsabilidade de calcular as médias, face aos testes dos instruendos, elaborar as pautas classificativas e torna-las públicas.
Já o tinha deixado escrito.
Acontecia também que, ao chegar ao fim qualquer curso, tínhamos de participar na semana de campo, acompanhando o nosso comandante.
Dado que estávamos fora do quartel, durante essa semana, éramos então dispensados  da obrigação dos serviços de sargento-dia, ou qualquer outro que nos competisse, na unidade.
Para tal, era elaborada previamente uma relação do pessoal que havia de ser dispensado, para ir para a semana de campo, sendo presente ao Comandante da Escola Prática de Artilharia, para a assinar.
Assim aconteceu connosco.
Entretanto, eu sou confrontado com o convite do meu irmão para que fosse padrinho do meu sobrinho, acontecendo a cerimónia precisamente na semana em que iria decorrer a semana de campo.
Coloco a questão ao capitão Oliveira, pedindo se me dispensava da semana de campo, para poder ir a casa, para esse efeito.
Disse imediatamente que sim, mandou-me preencher o passaporte e deu ordem ao Ernesto para que o levasse ao Comandante da unidade para o assinar.
Pouco tempo depois o Ernesto regressa com o passaporte por assinar e com o recado de que eu tinha sido dispensado dos serviços para ir para a semana de campo, sendo assim iria ser retirado da relação dos dispensados e na unidade teria de cumprir os serviços.
Argumentei com o capitão, dizendo que dessa forma iria fazer serviço dia-sim-dia-não, visto que tinha saído tanto pessoal para a semana de campo, que não havia ninguém disponível para me substituir.
Não adiantava, pois, conceder-me licença para ir a casa.
De rompante vira-se para o Ernesto e diz-lhe:
- Leva de novo o passaporte ao nosso Comandante. Eu já falo com ele.
Pega então no telefone e quando o Comandante atendeu diz-lhe, num tom que parecia o de um superior para um inferior:
- Meu Comandante, mandei de novo o passaporte, o senhor faz o favor de o assinar.
Não ouvi o que respondeu o Comandante, mas ouvi o que lhe disse:
- Este é um caso especial. O senhor faz o favor de assinar o passaporte e manter a relação das dispensas de serviço que assinou para a semana de campo.
Certo é que, pouco depois, chegou o Ernesto com o passaporte assinado, que permitia ausentar-me por uma semana, mantendo-me dispensado dos serviços, como se também estivesse na semana de campo.
Gozei então uma semana de licença no Fundão.
Ao fim dessa semana regressei a Vendas Novas, chegando quando os outros regressavam da semana de campo.
Como era da praxe, seguiu-se uma semana de licença para todos eles.
Uma vez que eu acabara de chegar de casa, dirijo-me ao gabinete com a intenção de saber do capitão Oliveira, o que eu iria fazer nessa semana.
Ao ver-me pergunta:
- Então, já meteste o passaporte ?
- Mas eu acabei de chegar de casa, meu capitão – respondi-lhe.
- Mete o passaporte, rapaz, não vais ficar aqui sozinho – respondeu-me, sorrindo.
Espontaneamente fiz a continência, dizendo:
- Obrigado, meu capitão.
E fui para mais uma semana de licença.
O homem que tanto temor inspirava, tinha afinal destes gestos surpreendentes.
Tal como a moeda, o Homem também tem duas faces.
Faz sentido a frase:  “Os melhores serão premiados " ?
Face à minha classificação no curso – o 1º. Lugar – alguém me havia convencido, porque era voz corrente ou porque já teria acontecido, de que não seria mobilizado.
Para ajudar ao meu convencimento de que não seria mesmo mobilizado, o tempo que foi decorrendo sem que houvesse qualquer ordem nesse sentido.
Mas estava escrito que havia de ir conhecer África, no caso concreto a ex-província ultramarina de Angola.
 Porque a nota de mobilização, que me foi dada a ler, acabou por chegar e dizia mais ou menos isto:- “é mobilizado o soldado C.S.M. Álvaro Roxo Vaz e outros 8 a nomear oportunamente…”.
Afinal, a classificação que obtive no curso acabou por ser penalizadora para mim, retardando a minha mobilização e consequente embarque para Angola, que veio a acontecer em 11.10.1967.
Tinham decorrido, pois, quase 17 meses desde que fora incorporado no exército.
A frustração não podia ser maior, até por me sentir atingido pelo escárnio de uma mobilização, cuja nota dizia que era eu e… “8 a nomear oportunamente”.
Daí ter colocado a mim próprio, muitas vezes, a interrogação:- se havia “8 a nomear oportunamente”, para além de mim, porque não nomear os 9 que haviam de ser nomeados nessa oportunidade, deixando-me fora do grupo ?
Afinal, neste caso, não fez qualquer sentido a frase: “os melhores serão premiados”.
No RAL2-Coimbra, a aguardar embarque
Todos os militares que concluem as suas especialidades são, depois, colocados numa qualquer outra unidade.
E conta, quanto à escolha da unidade, a classificação obtida no curso.
Eu havia pedido para ser colocado no RAL2, em Coimbra, sendo atendido no pedido… mas, pelo meio, surgiu um capitão Oliveira que me estragou os planos.
De qualquer modo, fui parar a Coimbra, quando já estava mobilizado.
Tinha um quarto do qual se via um panorama extraordinário, no Convento de Santa Clara, pois era ali que o RAL2 estava instalado.
Por altura da minha chegada, estavam marcados os campeonatos militares de natação.
Houve então uma sondagem junto de todo o pessoal , sobre quem sabia nadar.
Eu respondi, juntamente com alguns outros, positivamente.
Forma-se uma equipa e todos os dias de manhã uma viatura nos levava até à piscina da Associação Académica.
Foi um tempo muito interessante, porque até nos dispensaram de todos os outros serviços.
E chegou o dia das provas, que se realizaram em Tomar.
Muita espectativa e, nas eliminatórias, consegui ultrapassar os meus adversários, ficando para a final como o único representante do RAL2.
Nadava na modalidade de 100 m. bruços.
No dia das finais, dou de caras com um outro fundanense, o já falecido Álvaro Leitão.
Que também ia nadar nos 100 m. bruços.
O resultado ?
Foi vencedor o Álvaro Leitão.
Só mais uns pormenores da minha estadia em Coimbra.
Durante uns tempos ainda fiz serviços, cabendo-me fazer de sargento-dia e participar nas equipas de ronda à cidade.
Quando de sargento-dia, à noite, ia verificar se os militares colocados a fazer reforços, se encontravam no seu lugar.
Ora, um desses lugares era nas velhas instalações do Convento de Coimbra, um lúgubre espaço onde pernoitavam corujas e onde havia mesas de pedra com um cavado do feitio do corpo humano, que teriam servido para fazer autópsias, segundo se dizia.
Claro que as lendas não faltavam, também se dizendo que em tempos dali desapareceram soldados e a espingarda deles apareceu toda retorcida.
O cenário era, de facto, ideal para histórias desse tipo.
Quando por lá passei a primeira vez, é verdade que fui avançando com alguma falta de confiança, acabando por me assustar, sim, porque uma coruja esvoaçou junto à minha cabeça.
Mas nada mais que isso.
Quanto às rondas na cidade, havia uma trajectória que me foi logo dado a saber pelos “velhinhos” do RAL2.
Ir até à Rua Direita, na baixa de Coimbra, e, no reservado de um velho bar ali existente, deixar que o tempo passasse entre dois dedos de conversa com as simpáticas funcionárias.
Assim aconteceu algumas vezes, bastando que a equipa estivesse sempre alerta em relação à Polícia Militar, que também por lá circulava.
Afinal eu estava ali de passagem para Angola... não tinha de me chatear muito.
E acabou por ser uma boa experiência, até que chegou o dia de ir até ao Entroncamento, formar pelotão e embarcar para Angola.
Essa história também já foi contada no livro “Pelotão de Apoio Directo 1245 – no palco da guerra”.